sexta-feira, 17 de abril de 2009

O PAPÃO


Atrás da porta, erecto e rígido, presente,
Ele espera-me. E por isso me atrapalho,
E vou pisar, exactamenet,
A sombra de Ele no soalho!

-"Senhor Papão!"
(Gaguejo eu)
"Deixe-me ir dar a minha lição!
"Sou professor no liceu..."

Mas o seu hálito
Marcou-me, frio como o tacto duma espada.
E eu saio pálido,
Com a garganta fechada.

Perguntam-me, lá fora: "Estás doente?"
- "Não!", (grito-lhes)... "porquê?!" E falo e rio, divertindo-me.
Ora o pior é que há palavras em que paro, de repente,
E que me doem, doem, doem..., prolongando-se e ferindo-me...

Então, no ar,
Levitando-se, enorme, e subvertendo tudo,
Ele faz frio e luz como um luar...
E ouço-lhes o riso mudo.

- "Senhor Papão!"
(Gaguejo eu) "por quem é,
"Deixe-me estar aqui, nesta reunião,
"Sentadinho, a tomar o meu café...!"

Mas os mínimos gestos e palavras do meu dia
Ficaram cheios de sentido.
Ter de mais que dizer..., ah, que maçada e que agonia!
Bem natural que eu seja repelido.

Fujo. E na minha mansarda,
Volvo-lhe: - "Senhor Papão!
"Se é o meu Anjo-da-Guarda,
"Guarde-me!, mas de si! da vida não."

O seu olhar, então, fuzila como um facho.
Suas asas sem fim vibram no ar como um açoite...
E até no leito em que me deito o acho,
E nós lutamos toda a noite.

Até que, vencido, imbele
Ante o esplendor da sua face,
De repento me prostro, e beijo o chão diante de Ele,
Reconhecendo o seu disfarce.

E rezo-lhe: - "Meu Deus! perdão...: Senhor Papão!
"Eu não sou digno desta guerra!
"Poupe-me à sua Revelação!
"Deixe-me ser cá da terra!"

Quando uma súbita viragem
Me faz ver (truque velho!...)
Que estou em frente do espelho,
Diante da minha imagem.


José Régio

quinta-feira, 16 de abril de 2009

UNIVERSALIDADE


Tantos e tais caminhos se enredavam
- Ah, rede sobre o abismo! - ante os meus passos,
Que me deixei ficar bamboando os braços
E olhando os outros todos que avançavam...

E todos que avançavam me clamavam:
- "Anda conosco em busca de Espaços!"
A todos eu olhava de olhos baços
E todos, rindo com desdém, passavam.

Que o meu caminho - o meu! - é que eu pedia.
E o meu caminho, ou eram todos eles,
Ou era, então, ficar parado e só.

Fiquei. Sou eu!, na encruzilhada... e um dia,
Tu, vento, que debalde hoje me impeles,
Por todos eles semearás meu pó!


José Régio

BELEZA HUMANA


Que tem que em raptos de feroz ternura,
Nas ondas da volúpia, ao meu estreite,
Nem sei se mais com dor, mais com deleite,
Do teu corpo a vibrátil escultura?

Sua forma é perfeita, a linha é pura,
A cor são rosas a boiar em leite...
Mas quando é que Outro em mim nos não espreite
Delirantes de amor na noite escura...?

Sémen, urina, bílis, cuspo, suor,
Da vida da escultura são penhor...
Como esquecê-lo, ó estátua corruptível?

Que inda nem lasso o abraço, ou o corpo lasso,
Já a decepção desse Outro é que enche o espaço...
E achar-te bela, ó bela!; é-me impossível.


José Régio

SONETO DE AMOR


Não me peças palavras, nem baladas,
Nem expressões, nem alma... Abre-me o seio,
Deixa cair as pálpebras pesadas,
E entre os seios me apertes sem receio.

Na tua boca sob a minha, ao meio,
Nossas línguas se busquem, desvairadas...
E que os meus flancos nus vibrem no enleio
Das tuas pernas ágeis e delgadas.

E em duas bocas uma língua..., - unidos,
Nós trocaremos beijos e gemidos,
Sentindo o nosso sangue misturar-se.

Depois... - abre os teus olhos, minha amada!
Enterrra-os bem nos meus; não digas nada...
Deixa a Vida exprimir-se sem disfarce!


José Régio

SÍNTESE


Alta comédia misteriosa, a Vida
Era um bem digno dom de altos senhores.
Nós é que somos tão banais actores
Que a comédia decorre incompreendida.

Vivendo à superfície, e de fugida
Entre a plateia, o palco, os bastiadores,
Mimamos o sorriso, o riso, as dores
Duma Vida maior nunca atingida.

Porém, às vezes, lá da esquina, surge
Quem, afrontando o bando de Panurge,
Se exibe duplo, intolerável, só!

Abrem-se então, no palco, os alçapões...
O homem cai ao poço. E as multidões
Vão depor loiros murchos no seu pó.


José Régio

CÂNTICO NEGRO


"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre da minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Sópara desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstaculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é facil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho  a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!


José Régio

ADÃO E EVA


Olhámo-nos um dia,
E cada um de nós sonhou que achara
O par que a alma e a carne lhe pedia.

- E cada um de nós sonhou que o achara...

E entre nós dois
Se deu, depois, o caso da maçã e da serpernte,
... Se deu, e dará continuamente:

Na palma da tua mão,
Me ofereceste, e eu mordi, o fruto do pecado.

- O meu nome é Adão...

E em que furor sagrado
Os nossos corpos nus e desejsos
Como serpentes brancas se enroscaram,
Tentando ser um só!

Ó beijos angustiados e raivosos
Que as nossas pobres bocas se atiraram,
Sobre um leito de terra, cinza e pó!

Ó abraços que os braços apertaram,
Dedos que se misturaram!

Ó ânsia que sofreste, ó ânsia que sofri,
Sede que nada mata, ânsia sem fim!
- Tu de entrar em mim,
Eu de entrar em ti.

Assim toda te deste,
E assim todo me dei:

Sobre o teu longo corpo agunizante,
Meu inferno celeste,
Cem vezes morri, prostando...
Cem vezes ressuscitei
Para uma dor mais vibrante
E um prazer mais torturado.

E enquanto as nossas bocas se esmagavam,
E as doces curvas do teu corpo se ajustavam
Às linhas fortes do meu,
Os nossos olhos muito perto, imensos
No desespero desse abraço mudo,
Confessaram-se tudo!
... Enquanto nós pairávamos, suspensos
Entre a terra e o céu.

Assim as almas se entregaram,
Como os corpos se tinham entregado.
Assim duas metades se amoldaram
Ante as brabas, que tremeram,
Do velho Pai desprezado!

E assim Eva e Adão se conheceram:

Tu conheceste a força dos meus pulsos,
A miséria do meu ser,
Os recantos da minha humanidade,
A grandeza do meu amor cruel,
Os veios de oiro que o meu barro trouxe...

Eu os teus nervos convulsos,
O teu poder,
A tua fragilidade,
Os sinais da tua pele,
O goso do teu sangue doce...

Depois...

Depois o quê, amor? Depois, mais nada,
- Que Jeová não sabe perdoar!

O Arcanjo entre nós dois abrira a longa espada...

Continuámos a ser dois,
E nunca nos podemos penetrar!


José Régio