quinta-feira, 5 de março de 2009

SEGUE NO PRÓXIMO NÚMERO


Meu corpo seco, elástico e pequeno
Rolou, de envolta com vertigens de astros,
E rasgouondas, montes, alabastros,
Atrás nem sei de que longínquo aceno...

Com as feras travou comércio obsceno,
Sob troncos mais altos do que os mastros;
E abraçado no chão, transpôs de rastros
Desertos mudos dum pavor sereno.

Pendurado do braço dum candeeiro,
Fixo a uma cruz, ardido num braseiro,
Morreu, - ressuscitando a cada morte.

Venho e vou...! venho e vou...!, sempre! E é inútil
Querer vestir qualquer paragem fútil,
Que o tal aceno incógnito é mais forte...


José Régio

O POETA MORTO


Barbearam-no e vestiram-no de preto,
Calçaram-lhe sapatos de verniz.
Moscas varejas chupam-lhe o nariz,
E ele mantém-se pálido e correcto.

Cheira a cera no quarto, já repleto
Do que há de mais distinto no país:
... Um general, dois lentes, um juiz...,
Com ar triste, imbecil, grave e discreto.

Logo, os críticos sérios e carecas
Folhearão no pó das bibliotecas
Um livro caluniado enquanto vivo

Esse a quem chamam hoje ilustre e augusto
Porque... porque ele, agora, é inofensivo
Como qualquer estampa ou qualquer busto!


José Régio

A LONGA HISTÓRIA


Desci, desci nas sombras e no frio,
No silêncio desci, desci mais fundo...
Como um longínquo som dum vago rio,
Se me perdia ao longe o som do mundo.

No muro circular e fugidio
Se espelhou meu suor de moribundo.
Que o poço era sem fundo, mas desci-o,
Desci-o até supor achar-lhe fundo.

Que fundo era essa lodo, que fugia
Sob os pés, que mau grado me arrastavam,
Sob o corpo, que à força inda descia...?

Disso os meus versos rangem, disso travam...
Mas era inda descer, ou já subia,
Que ante mim as estrelas cintilavam?!


José Régio

REDENÇÃO


Meus poemas desprezam a Beleza...
Fi-los descendo e transcendendo lodos.
(Dos lodos todos e dos poemas todos
Aqui vos falo com feroz franqueza!)

Fi-los, sentando à minha impura mesa
Quantos pecaram, por qualquer dos modos
Que há, de pescar, entre judeus e godos...
E assim os fiz mais belos que a Beleza.

Tenho as mãos negras e os sorrisos curvos
Dos que, na sombra, beijam as raízes
Do que parece claro à luz de fora.

Vinde aos espelhos dos meus olhos turvos!
Se sois infames, fracos, e infelizes,
Neles vereis como já cresce a aurora.


José Régio

quarta-feira, 4 de março de 2009

IGNOTO DEU


Desisti de saber qual é Teu nome,
Se tens ou não tens nome que Te demos,
Ou que rosto é que toma, se algum tome,
Teu Sopro tão além de quanto vemos.

Desisti de Te amar, por mais que a fome
Do Teu amor nos seja o mais que temos,
E empenhei-me em domar, nem que os não dome,
Meus, por Ti, passionais e vãos extremos.

Chamar-Te amante ou pai..., grotesco engano
Que por de mais tresanda a gosto humano!
Grotesco engano o dar-te forma! E enfim,

Desisti de Te achar no quer que seja,
De Te dar nome, rosto, culto, ou igreja...
- Tu é que não desisterás de mim!


José Régio

NOVO SONETO DE AMOR


Numa volta qualquer do redondel
Nosso olhar se encontrou, longo e seguro.
Tu seguias teu fado amplo e cruel;
Eu sonhava o meu sonho imenso e obscuro.

Pousada a esponja de vinagre... e mel
No meu sôfrego lábio seco e duro,
Logo, ao teu fado de emigrar fiel,
Me deixaste ao dobrar de qualquer muro.

Adeus, pois, neste mundo, se te apraz!
Parte!... mas eu irei aonde vás,
Como tu ficarás onde eu ficar.

Deus fez-te minha e fez-me teu, bem sabes:
A vida em que não caibo, nem tu cabes,
Nada pode, entre nós, senão passar...


José Régio

segunda-feira, 2 de março de 2009

JUÍZO DE DEUS


O barro e o pó qe sou, se os Tu moldaste,
Porque é que em mim assim tão pouco é Teu?
De vez em vez se arroja o caule ao céu,
Mas nenhum fruto ou flor dá a erecta haste!

Falso diamente em seu fingido engaste,
Na minha carne, o espírito esmaeceu.
Pergunto-me a mim próprio quem sou eu;
Pergunto-Te o que em mim de Ti deixaste.

Sim, Senhor criador de céus e terra!
Se este vão simulacro é a Tua imagem,
Qual dos dois, Tu ou ele, engana ou erra?

(Mas que resposta espero eu, se a aragem
Do meu só perguntar por Ti, já ferra
Do Teu eterno o meu só ser passagem...?!)


José Régio

A ESFINGE


Ah, que não penso eu como quem pensa
Que viver muito é atordoar-se bem!
Pus-me a um cantinho, e achei a vida imensa.
Pode um só passo andar bem mais que cem...

Fitei o Sol de cara e a noite densa,
Mas só a mim fixei - que a mais ninguém.
Já não concebo angústia que me vença,
Que até vencido vencerei também.

Cruzei os braços sobre o peito. E quedo,
Passeio sobre a areia a arder parada
Nem sei que olhar subtil, vazio, mudo.

Abram-me... em vão! Sou oco e sem segredo.
Falar?!... Porque falar, se não sei nada?
Contemplo, calo, fico... e entendo tudo.


José Régio

CÂNTICO


Num impudor de estátua ou de vencida,
Coxas abertas, sem defesa..., nua
Ante a minha vigília, a noite, e a lua,
Ela, agora, descansa, adormecida.

Dos seus mamilos roxo-azuis, em ferida,
Meu olhar desce aonde o sexo estua.
Choro... e porquê? Meu sonho, irreal, flutua
Sobre funfuras e confins da vida.

Minhas lágrimas caem-lhe nos peitos...,
Enquanto o luar a nimba, inerte, gasta
Da ternura feroz do meu amplexo.

Cantam-me as veias poemas nunca feitos...
E eu pouso a boca, religiosa e casta,
Sobre a flor esmagada do seu sexo.


José Régio

FRENTE A FRENTE


Tinha garras nos dedos! E agarraram
Terra com sémen, húmus, sangue, suor...
E essas forças de amar se sublimaram
... Através mãos e pés de pecador.

Quis mais! E assim meus braços se estiraram
No insaciável apelo ao Teu Amor,
E os meus olhos terrenos estoiraram
De sobre-humano e sôfrego esplendor.

Meu Deus! já me não basta o chão que é meu!
Mas através de chão foi a Ti vim;
E, subindo até onde ou Tu ou eu,

Não pude erguer-me a Ti, desço-te a mim!
Peco? Se peco, o meu pecado é o teu:
Seja eu Deus ou Tu homem... que eis o Fim.


José Régio

SONETO DO JOSÉ MATIAS


Aquela aparição, aquela espuma
Que finge ter também um corpo..., aquela
Que é por de mais subtil, por de mais bela,
Para existir aquém do sonho e a bruma,

Aquela em quem amei nem sei que suma
De nuvem, flor, árvore, névoa, estrela,
Aquela que a mim próprio me revela,
E me é todas as mais sem ser nenhuma,

Sim, tem um nome, é quase uma qualquer,
(Tem o nome de Elisa...) e foi mulher
Dum que a deixou, morrendo, ao dono actual.

Esses, não eu!, te gozem, corpo triste.
A Beleza que encarnas e traíste
Só desce até cá baixo ao meu portal...


José Régio

domingo, 1 de março de 2009

TRIUNFO


Um dia, os fúteis sons que eu hoje emprego
Talvez se volvam expressões leais,
E os meus olhos, monóculos de cego,
Multipliquem a luz como os cristais.

Talvez, então, mau vão dessassossego
Seja sede a beber cada vez mais,
E as minhas asas frustes e morcego
Subam no azul como as das águias reais.

Um dia, o dominó que me mascara
Talvez me caia aos pés; e eu me alevante
No meu andor de glória e de desgraça.

Talvez o mundo, então, me volte a cara...
Mas só então, virado para diante,
Poderei ver o fundo à minha Taça!


José Régio

MOMENTO MUSICAL


Não tarda que ela acorde, a voz nocturna
Que só levanta enigmas e embaraços,
Me esfrie a boca, o peito, os membros lassos,
Me afunde a alma em frouxidão soturna...

Não tarda que da aérea furna
Onde mora, em não sei que ideias espaços,
Dos longes da Abstracção me estenda os braços
O portador da cinerária urna...

Porém agora, embora um só momento,
Sobre nós caia, amor, o Esquecimento!
Que eu não seja nem tu, nem nós, nem eu,

Nem mais, talvez, do que uma simples cousa:
Corpo feliz que sobre o teu repousa,
Como deitado em pleno mar ou céu...


José Régio

SEGUNDO SONETO DA LIBERTAÇÃO


- Tu?! sabes tu que o tronco em que pompeias
To levantaram mãos de eunucos pálidos?
Vences, mas como os fracos e as sereias:
Corrompendo e enervando os homens válidos.

Se vives com requinte e com ideias,
É que tens mãos sem cor, braços esquálidos.
Respondes a razão com melopeias,
Com frases dúbias e sorrisos cálidos...

Sabes que o teu diadema é de oiro impuro?
Vestes de seda, e os bichos te consomem.
Vives de humilhações e de vaidade...

Porque erguer tanto a voz com ar seguro?
Sabes que o mal consegue ser um Homem?
- Sei... que não tenho medo da Verdade.


José Régio