sábado, 28 de fevereiro de 2009

FILHO DO HOMEM


Subia eu ao monte e alguns troçaram,
Enquanto a multidão, lá em baixo, ria.
Ria risos e troças que arranharam
Tudo o que em mim, sensível, se doía...

Todos eles, depois, me detestaram
Por eu me destacar da maioria.
Fortes, pois, conta um só, cem abusaram,
Enquanto a multidão, em volta, ria.

Vilanagem, fartar!, que estou cansado.
Eis-me... Ecce homo! -nu, vencido, atado.
Podeis cuspir-me à cara os vossos lodos.

Mas quanto mais de rastos, mais me prezo.
Só o meu amor iguala o meu desprezo...
E eu vingo-me expirando por vós todos!


José Régio

BAILE DE MÁSCARAS


Contínua tentativa fracassando,
Minha vida é uma série de atitudes.
Minhas rugas mais fundas que taludes,
Quantas máscaras, já, vos fui colando?

Mas sempre, atrás de Mim, me vou buscando
Meus verdadeiros vícios e virtudes.
(- E é a ver se te encontras, ou te iludes,
Que bailas nesse entrudo miserando...)

Encontrar-me? iludir-me? ai que o não sei!
Sei mas é ter no rosto ensaguentado
O rol de quantas máscaras usei...

Mais me procuro, pois, mais vou errado.
E aos pés de Mim, um dia, eu cairei,
Como um vestido impuro e remendado!


José Régio

MELANCOLIA


Basta, meu coração! nada de esperanças!
Desesperança extrema, altiva, e crua.
Silêncio sobre uma grande álea nua
Com troncos sem folhagens, como lanças.

Nenhum lenço a acenar frágeis lembranças.
Espaços baços, amplos, e sem lua.
Um vento igual, rasteiro, e sem que insinua
Resignações que fingem de bonanças.

O chão varrido e bem pisado, espesso
Como um peito esmagado em cujo avesso
Congelem subterrâneos de soluços.

E ao fundo, um pobre corpo abandonado...
Abandonado e a apodrecer, de bruços,
Com feridas que vão de lado a lado.


José Régio

SONETO DE CIRCUNSTÂNCIA


Os semideuses são boxeurs, ciclistas,
Futebolistas ou chauffers; e Deus,
Com semideuses tais, deserta uns céus
Que ninguém, já, lograva dar nas vistas.

Para salvar o mundo, há um rol de listas
De provérbios arianos ou judeus;
Mas ninguém quer ser salvo! e os vãos troféus
Bolorecerem nas mãos propagandistas.

Aristo, demo-cratas e mais cratas
Vão, de atómicas bombas na algibeira,
Contratar paz com artes diplomatas.

O amor dispensa as setas e a seteira.
E em tal progresso, os Santos da Reacção
Masturbam-se na imensa solidão...


José Régio

AS BARREIRAS


Tudo passou por mim.
Tudo passou por mim, sim, - mas passou...
A semente caiu no meu jardim:
Um sopro a trouxe e levou!

Quantas, oh, quantas vezes, (tantas , quantas
O sarcasmo dos deuses me escolheu)
Tu, que por mim passaste a horas tantas,
Demoraste - e porquê? - o teu olhar no meu!

Tuas pupilas cheias de alma tinham
Tal fome de compreensão,
Que, trémulos, meus lábios e meus braços mal retinham
O grito da resposta: irmão...!

Mas nós passávamos. A vida, igual, banal, alheia,
Desenrolava-se entre aquele olhar...
Subia o pano. Ante a plateia,
Tu e eu só sabíamos falar.

Quantas, oh, quantas vezes, (tantas, quantas
O sarcasmo dos deuses me escolheu)
Tu, que eu tive entre os braços, certa noite, a horas tantas,
Feriste o lábio súplice no meu!

Um arrepio mais de além me percorria;
E eu compreendia, pelo amor com que chorava,
Que, no teu corpo, alguém, alguma coisa, me pedia,
Mais do que o vício triste que te dava...

Era um clarão! Giravam discos... Num instante,
Nada restava desse apelo de Absoluto
E eu retomava o meu papel de amante.
Sobre o teu corpo de anjo corrupto.

Quantas, oh, quantas vezes, (tantas, quantas
O sarcasmo dos deuses me escolheu)
Ao dobrar duma esquina, a horas tantas,
Nem eu sei quê - me enterneceu...!

E, de repente, como uma tontura,
O cácere das coisas se me abria;
Pairava sobre mim o halo ou a sombra da Loucura,
E eu ouvia, e sentia, e via, e compreendia...

Uma janela escura, um muro devastado,
Um portãovelho, um tronco de árvore, um penedo,
- Tudo avançava para mim transfigurado,
Com faces tais que me faziam medo.

Mas os meus olhos cegos espreitavam, e eu só via
Madeira podre ou pedra bruta - nada mais...
E sobere estes clarões a vida decorria,
Como um trapo safando uns traços geniais.

Sim, cai toda a semente em meu jardim.
O vento que a traz a leva...
Senhor, tem pena de mim!
- Deixa-me a tua Luz ou a minha Treva!


José Régio

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

O SANTO DE PEDRA


- <> E partiram,
Cantando um hino de guerra.
Mas só meus olhos seguiam
No sulco em prata que abriam
Para a conquista da terra...

Pensava: Sou bem diferente!
Perdi-me do meu Planeta.
Deixa passar essa gente!
Que a tentação me não tente:
Sou triste, só, doido, poeta...

- <> me procavam
As virgens cujo olhar luz.
Mas só meus olhos sugavam
(Que os beiços se me fechavam)
As pontas dos seios nus...

Pensava: Quem me compreende?
Quem se dá como eu dou?
Não compro amor que se vende.
Não prosto quem se me rende.
Sou esta angústia que sou...

- <> E de abalada
Se iam tentar o futuro.
Mas só meus olhos de nada
Lhes iam atrás, na estrada
Que desagua-va no escuro.

Pensava: Porque tentar?
Li no meu corpo o meu fado.
Bem sei o que iria achar!
Prefiro deixar-me estar.
Ganho mais assim parado...

E vaidades e prazeres
Passaram com seus vaivéns.
Tentavam, como as mulheres,
Com blandícias: - <>
Com ousadia: - <>

Pensava: Aonde é que iria
Se em tudo só vejo o fundo?
Cada vez mais cada dia
Palpo a fronte, e a encontro fria
Dum sour moribundo...

E assim, fiquei, sem saber
Se aqueles que vira ir
Teriam ido vencer.
Não quis ouvir, nem quis ver,
Nem quis pensar, nem sentir...

Mas as vozes que passaram
- <>
De dentro de mim falaram.
Que as veias me tumultuaram
Sob regatos de chamas...

E igual me vi a vós todos:
Também eu ia arrastado.
Tentavam-me os mesmos lodos,
Tentando dos mesmos modos
O mesmo barro amassado!

Então, rescaldo que lavra,
Que rebenta, e se faz clarão,
Um grito se alevantava
Do fundo de mim... gritava
Três letras bem nuas: - <>!

(Não, que há um Outro maior,
Altivo, sereno, frio,
Que tenho por meu senhor...
E eu ponho-me ao seu dispor,
Olho ao longe, e renuncio!)

Ó Horto em que resolvi
Renúncia a todos e a tudo!...
E os olhos, lentos, desci...
E nunca mais os ergui,
Supremo, estático e mudo.

Tinha nas mãos um missal,
Aberto a páginas dez;
Às costas, o meu bornal;
Tapando a cinta, um saial;
E umas sandálias nos pés.

Mancharam-me de excrementos
As aves dos céus e a gente.
Mirraram-me os sóis e os ventos.
E durei séculos lentos
Naquela presença ausente...

Assim!, assim triunfei,
Num reino onde nada medra.
De tal reino é que sou rei...
Com sangue me libertei,
Mas consegui ser de pedra!


José Régio

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

DO MEU ORGULHO


Um dia, ó sonho vão!
Sonhei despir-me todo de vaidade,
E ser, na branca ermida da Humildade,
Um resignado e lírico ermitão!

Desde que abrira os olhos para o largo
E, com olhar de ver, olhara em roda,
Que me ficara adentro da alma toda
Um gosto amargo:

Ó gosto de fazer da pena alheia
A pena própria! e ser de tal maneira,
Que a humanidade inteira
Subisse e tumultuasse em mim como uma cheia!

E humilde, triste, heróico, verdadeiro,
Passei a realizar meu sonho louco:
Nem sei o que sofri! Tudo era pouco
Para sofrer um mundo inteiro.

Vivi de pontapés e bofetadas.
Deitou-me a Fera ao peito a garra adunca.
Fui mudo como as pedras das calçadas
Que todos pisam... mas não falam nunca.

Às vezes, já do coração me vinha,
Em vez de sangue, fel - vinagre e fel.
Mas eu mantinha
Para comigo mesmo o papel...

Minavam-me revoltas desmedidas.
Vinham ao lume de água os velhos lodos...
E eu quisera atirar minh'alma em feridas
À cara de vós todos!

Sorria,
No que era hábito, já, de mascarar.
Mas como vos odiava, eu que sofria
Da raiva de sofrer e calar!

E, como o meu sorriso era magoado,
Quase a pedir perdão
De todo esse ódio verde e espezinhado
Que me roía o coração,

E como eu tinha os olhos e a humildade
Dum réu que ajoelha, e se confessa, e chora,
A turba, olhando-me com toda a autoridade,
Achou que era chegada a hora...

E cada qual
Veio atirar o coice ao velho leão da história.
Ah, que grotescos, em tamanho natural,
Os não conservo, a todos, na memória!

Ora, assim arrastando ante a ralé,
Eu abraçava ao peito o meu tesoiro:
Ó meu orgulho doido! ó minha fé!
Embebedei-me dele como oiro!

Meu espantoso orgulho da humanidade,
E dessa própria lama que beijava!
A minha caridade
Era a moeda viva que o pagava...

Orgulho de ser santo! E o que sofria,
Dava-o por bem sofrido e por bem pago,
Pensando que era grande quem bebia
(Como eu bebia) o derradeiro trago.

Até que pude ver que me enganava:
Desse Anjo que eu, em sonhos, me fizera,
Só um fantoche trágico restava
- Farrapo humano que nem homen era...

E revoltei-me! Então,
Sonhei voltar a ser um outro que matara:
E, remessando a minha luva ao chão,
Pálido e firme, olhei, a ver se algém ma levantara.

Estava muito farto! Era cansaço
O que dava ao meu braço um ar seguro.
Mas ninguém, contra o meu, ergueu o braço,
E a sós me vi a batalhar com o silêncio, a noite, o escuro...

Elevara-me, ainda, uma quiera:
A de me sentir forte.
Mas tudo, à minha roda, emudecera,
E era vazio, cheio só de morte...

Reconhecendo, então, os meus irmãos,
Deixei cair as mãos
E resignei-me - enfim!

E resignei-me a ser pobre animal,
A ser instinto - a ser donzela e fera...
Abaixo as atitudes do Ideal!
E resignei-me a ser o que já era...

Um outro orgulho, pois, rebenta em mim,
Selvagem, simples, indomável, mudo;
Mas eu desejo-o mesmo assim!
(Que eu, hoje, tolero tudo...)


José Régio

NARCISO


Dentro de mim me quis eu ver. Tremia,
Dobrado em dois sobre o meu próprio poço...
Ah, que terrível face e que arcabouço
Este meu corpo lânguido escondia!

Ó boca tumular, cerrada e fria,
Cujo silêncio esfíngico eu bem ouço!...
Ó lindos olhos sôfregos, de moço,
Numa fronte a suar melancolia!...

Assim me desejei nestas imagens.
Meus poemas requintados e selvagens,
O meu Desejo os sulca de vermelho:

Que eu vivo à espera dessa noite estranha,
Noite de amor em que me goze e tenha,
... Lá no fundo do poço em que me espelho!


José Régio

A FERNANDO PESSOA (ELE MESMO)


Cada verso é uma esfingeter falado.
Mas quanto mais explícito ela o diz,
Mais tudo permanece inexplicado
E menos se apreende o que ela quis.

Erra um sussurro, tão etéreo e alado
Que nem mesmo silêncio o contradiz.
E o ouvi-lo, ou ávido ou irado
Na busca dum segredo sem raiz,

É como se em pensar - um descampado -
Passasse fugitiva e intensamente
O Tempo todo inteiro projectado

E a sombra ali marcasse, na corrente
Do nada para o nada, inda passado
E já futuro, a ficção do presente.


Reinaldo Ferreira
Os astros nascem,
Crescem e morrem
Sem aflição,
Por isso correm
Sem que perguntem
P'ra onde vão.

O fácil espaço
Foi-lhes materno
Ventro fecundado;
Nasci num quarto,
Nasci dum parto
E foi magoando
Que vim ao mundo.

Nasci rasgando
Quem me sonhava
Antes que mesmo
Me concebesse;
Não sei dum astro,
Tão impiedoso,
Que ao espaço agravos
Tamanhos desse!

Nasci rompendo
Quem me continha
No grácil ventre
Desfigurado,
Como um sacrário
Vaso sagrado!

Mãos impacientes
De me tocarem
Logo estendia
Quem eu magoava
E ensaguentava
Quando nascia!

Nascença de astros
Não tem valor:
Que o fácil espaço
Pare-os sem dor.


Reinaldo Ferreira

MEU QUASE SEXTO SENTIDO


Por detrás da névoa incerta,
Da bruma desconcertante,
Há uma verdade encoberta
Que é, por trás da névoa incerta,
Intemporal e constante.

Oh névoa! Oh tempo sem horas!
Oh baça visão instável!
Que mal meus olhos afloras,
Em vão transmutas, descoras...
Meu olhar é infatigável.

Quero saber-me quem sou
Para além do que pareço
Enquanto não sei e sou!
Nuvem que a mim me ocultou,
Ai! meramente aconteço.

Com menos finalidade
De que uma folha caída
Na boca da tempestade,
Porque ela é, na verdade,
Morte a caminho da Vida;

E eu não sei donde venho
Nem sei, sequer, p'ra onde vou.

Rompa-se a névoa encoberta!
Quero saber-me quem sou!


Reinaldo Ferreira
Nasci poeta abstruso.
Amo as palavras que estão
Entre o arcaico e o difuso
No cerne da indecisão.

Prefiro adrede e gomil.
Digo delíqui e fanal.
E só descrevo um funil
Em termos-vaso-de-graal.

Mas nesta minha importância,
Neste sol, que me irradia,
Nem Deus preenche a distância
Que vai de mim à Poesia.


Reinaldo Ferreira
Na vida somos iguais
Às peças que no xadrez
Valem o menos e o mais,
Segundo o acaso que as fez

Do mesmo cepo nascer
Para as batalhas pensadas,
Aos mais, peões de perder,
A raros, ficções coroadas.

Mas, findo o jogo, receio
Que, extintas as convenções
Durma a rainha no meio
Dos mal nascidos peões.


Reinaldo Ferreira

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Regresso de parte alguma
Rico mais do que partira,
Pois trago coisa nenhuma
Sem desespero e sem ira.

Agora vivo contente
No meu exílio sereno;
Tomei tamanho de gente
E não me dói ser pequeno.

Pedra parada na calma
Tranquilidade dos charcos,
Deixem dormir minha alma,
Como apodrecem os barcos...


Reinaldo Ferreira

4


Volver às rimas suaves,
Aos metros embaladores,
Cantar o canto das aves,
A aurora, a brisa e as flores...

Vibrar na deposta lira
Dos trovadores sepulcrais
Delidas queixas d'Elvira,
Zelos de bardo, fatais...

Para que nessa ficção,
De outras apenas diferente,
Ao fogo do coração
Arda a razão descontente.


Reinaldo Ferreira
Se eu nunca disse que os teus dentes
São pérolas,
É porque são dentes.
Se eu nunca disse que os teus lábios
São corais,
É porque são lábios.
Se eu nunca disse que os teus olhos
São d'ónix, ou esmeralda, ou safira,
É porque são olhos.
Pérolas e ónix e corais são coisas,
E coisas não sublimam coisas.
Eu, se algum dia com lugares-comuns
Houvesse de louvar-te,
Decerto que buscava na poesia,
Na paisagem, na música,
Imagens trascendentes
Dos olhos e dos lábios e dos dentes.
Mas crê, sinceramente crê,
Que todas as metáforas são pouco
Para dizer o que eu vejo.
E vejo lábios, olhos, dentes.


Reinaldo Ferreira
Na tarde erramos
Nós, tu e eu,
Mas três.
Tão sós que vamos
E não sou eu
Quem vês.

Discreto calo,
P'ra que o meu senso
Louves;
Em vão não falo,
Tanto o que eu penso
Ouves.

Melhor me fora
Que a outro assim
Levasses
E, longe embora,
Somente em mim
Pensasses.


Reinaldo Ferreira
A tua mão é que desperta Abril
E, só de lhe tocar, reveste a rosa...
E o vento vem, à tus mão airosa,
Como o cordeiro vem ao seu redil...

É tua mão que nos acende, às mil,
Estrela por estrela, a clara noite oleosa...
E nela, a vasta vaga procelosa
Semelha avena mansa e pastoril.

Oh! mão que nos semeias maravilhas,
Afastas do naufrágio as gastas quilhas
E deténs o trovão que nos assombra!

Oh! mão de alado gesto poderoso!
Entre todos sou eu quem, mais ansioso,
Aguarda que me cubra a tua sombra!


Reinaldo Ferreira
No amor que sentes põe amor, mais nada.
Guarda o ciúme para quem odeias.
E, se algum diahás-de cortar as veias,
Seja a do tédio ou da renúncia a estrada
Que tu escolheres, não da paixão frustrada...

Pede à carne só, e não ideias;
Triste recurso das solteiras feias...


Reinaldo Ferreira
O Tractor, Deus desta Idade
Não poupa as rosas inúteis.
E esmaga nelas, tão fúteis,
A outra finalidade
Das coisas, desde o início
Criadas para que houvesse
Horas de paz no bulício
Em que a existência acontece.


Reinaldo Ferreira
Rosa, a mulata, desperta
Com os morcegos, à hora
Em que a Lua, nódoa incerta
E sem vulto, no céu aflora

E Vénus, mito propício
Que em seu destino decide,
Convoca as filhas do Vício
Ao culto a que ela preside.


Reinaldo Ferreira
Perguntas-me quem sou? Sou astro errante
Que um sol dominador a si chamou,
E, cego do seu brilho rutilante,
Se queima nessa luz que o encantou!

Meus passos de inseguro caminhante,
Submissos ao olhar que os escravizou,
Caminham para Ti em cada instante
E tu ainda perguntas quem sou!

Eu sou aquilo que de mim fizeste,
Sou as horas sombrias que me deste
A troco da ternura que te dei...

Perguntas-me quem sou? Nome de Cristo,
Eu nada sou, Amor, eu nem existo,
Mas querendo tu, Amor, tudo serei!


Reinaldo Ferreira
Se eu podesse guardar os teus sentidos
Numa caixa de prata e de cristal,
Entre conchas do mar, búzios partidos,
Pequenas coisas sem valor real...

Se eu podesse viver anos perdidos
Contigo, numa ilhotade coral,
Para além dos espaços conhecidos,
Mais longe do que a aurora boreal...

Se eu soubesse que o olhar de toda a gente
Te via, por milagre, repelente,
Que fugiam de ti como da peste...

Nem assim abrandava o meu ciúme,
Que é afinal o natural perfume
Da flor do grande amor que tu me deste.


Reinaldo Ferreira
Domina-me um terror incoerente
Do Nada, da final insenção...
Por isso creio em Deus com Fé demente,
Por medo, por defesa, com paixão.

Se busco todavia uma razão
Que fortaleça a Fé de que sou crente,
Tortura-me o saber que tudo é vão,
Que tudo se aniquila finalmente,

Que tudo se transmuta e se transforma
E que perdura apenas noutra forma
Aquilo que no mundo é material.

Concebo que isto tudo tenha um fim.
Só não concebo o que será de mim,
Cumprido o meu degredo terreal.


Reinaldo Ferreira
Contente nunca estou; feliz não sei
Se existe alguém ou neste ou noutro mundo.
Vou para o Nada, sou do Nada oriundo,
E entre dois Nadas desventura é Lei.

Da cobarde esperança emancipei
A previsão do meu destino imundo.
Sou consciente do mal em que me afundo,
E consciente do mal continuarei.

Nem revolta me fica, apenas pressa
De me tornar por fim parada peça
No cósmico rolar nefasto e louco.

Depois quero dormir um sono enorme...
Que para uma aflição que nunca dorme,
A Morte, temo bem que seja pouco.


Reinaldo Ferreira
Minha alma é obelisco corroído
Ou apenas - quem sabe? - inacabado,
A memória dum fasto já esquecido
Ou dum outro talvez antecipado.

Só sei que lhe não sei qual o sentido;
E o erro foi, assim, ter procurado
O que tenha talvez desaparecido
Ou não fosse jamais concretizado.

Na encruzilhada, os viandantes raros,
Se os olhos para ela erguem, avaros,
Não conservam, sequer, a sua imagem.

Mas erguida, sem nexo, longa e triste,
Ela sabe que é, sente que existe
Na dor com que ensombrece esta paisagem.


Reinaldo Ferreira
Da margem esquerda da vida
Parte uma ponte que vai
Só até meio, perdida
Num halo vago, que atrai.

É pouco tudo o que eu vejo,
Mas basta, por ser metade,
P'ra que eu me afogue em desejo
Aquém do mar da vontade.

Da outra margem, direita,
A ponte parte também.
Quem sabe se alguém ma espreita?
Não a atravessa ninguém.


Reinaldo Ferreira
Onde, aguardando, esperasse,
Onde, cantando, me ouvisse,
Onde, podendo, bastasse,
Onde, vivendo, existisse,

Onde o intuito trouxesse
O corpo de se cumprir
E eu todo sempre me desse,

Aí seria também
De exílio a minha atitude.
O que é longe é sempre o Bem,
Por mais que a alma mude.


Reinaldo Ferreira

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

JOGO


Os teus dedos perlam
E
Rolar empurrar provocar adular
Torturar sentir dormitar estremecer
Flutuam á minha volta.
Rompe-se a cadeia!
O teu corpo agiganta-se!
No brilho das luzes baixam os teus olhos
E sorvem-me
E
Sorvem sorvem
Crepusculam
Fervilham!
As paredes afundam-se!
Espaço!
Tu!


(Autor desconhecido)

CÃNTICOS


I

Ah! Não sermos nós o primitivo ser!
Núcleo de plasma num pântano quente.
Vida e morte, fecundar e nascer
Emanando de seivas, mudamente.

Folha de alga ou colina em areal,
Formações erosivas, verticais.
Já o insecto, a asa de pardal,
Seriam perfeição, e dor a mais.

II

Desprezível o cinismo e o amor,
O desespero, saudade e quem tem esperança.
Nós somos deuses minados de dor,
Mas sem que Deus nos saia da lembrança.

Baía amena. Escuros sonhos fetais.
Botões-bola-de-neve: chumbo estelar.
Panteras de veludo em matagais.
Só margens. E o apelo eterno do mar.



(Autor desconhecido)

LOVER'S SEAT - Ernst Standler


Na noite, percorremos os íngremes atalhos, entre verdes arbustos, pelas dunas.
Tu descansas, enlaçada a mim. A falésia branca lança a plumagem cintilante sobre profundos mares.
Aqui, onde o rochedo se suspende nos ares
Em brusca avidez de morte, resvalaram outrora dois amantes para o leito azul de espumas.

Ao longo soa a ressaca. Entre beijos a lenda me deleita,
Que a tua boca, a rir, pela cálida noite de verão me vem dizer.
Mas inclino-me mais, e vejo o teu rosto como de felicidade estarrecer
E surda melancolia à espera por detrás dessas pestanas, e o fim que espreita.

A MULHER-AMANTE


Ficas tão grande e tão branca, assim nua,
Que de estranheza em mim não caio,
Querida. Brilhante como a lua,
Como lua em mês de Maio.

Tens dois seios,
Pêlos e lisa musculatura.
Ancas prometendo largos meneios,
Dançarina de flexível cintura.

Entrega-te! Na rua em frente
Caem chuvas. Vazio o envidraçado,
A esconder-nos... - de toda, toda a gente! -
Quanto pesa o teu cabelo? É muito pesado.

- Que é dos teus beijos? Tenho a garganta azedada,
Vem com os teus lábios dar-me um beijo!
- Tens frio? - Estás tão gelada
E morta, nas pálidas costelas que te vejo.

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Autor desconhecido
(1912)