Tudo passou por mim.
Tudo passou por mim, sim, - mas passou...
A semente caiu no meu jardim:
Um sopro a trouxe e levou!
Quantas, oh, quantas vezes, (tantas , quantas
O sarcasmo dos deuses me escolheu)
Tu, que por mim passaste a horas tantas,
Demoraste - e porquê? - o teu olhar no meu!
Tuas pupilas cheias de alma tinham
Tal fome de compreensão,
Que, trémulos, meus lábios e meus braços mal retinham
O grito da resposta: irmão...!
Mas nós passávamos. A vida, igual, banal, alheia,
Desenrolava-se entre aquele olhar...
Subia o pano. Ante a plateia,
Tu e eu só sabíamos falar.
Quantas, oh, quantas vezes, (tantas, quantas
O sarcasmo dos deuses me escolheu)
Tu, que eu tive entre os braços, certa noite, a horas tantas,
Feriste o lábio súplice no meu!
Um arrepio mais de além me percorria;
E eu compreendia, pelo amor com que chorava,
Que, no teu corpo, alguém, alguma coisa, me pedia,
Mais do que o vício triste que te dava...
Era um clarão! Giravam discos... Num instante,
Nada restava desse apelo de Absoluto
E eu retomava o meu papel de amante.
Sobre o teu corpo de anjo corrupto.
Quantas, oh, quantas vezes, (tantas, quantas
O sarcasmo dos deuses me escolheu)
Ao dobrar duma esquina, a horas tantas,
Nem eu sei quê - me enterneceu...!
E, de repente, como uma tontura,
O cácere das coisas se me abria;
Pairava sobre mim o halo ou a sombra da Loucura,
E eu ouvia, e sentia, e via, e compreendia...
Uma janela escura, um muro devastado,
Um portãovelho, um tronco de árvore, um penedo,
- Tudo avançava para mim transfigurado,
Com faces tais que me faziam medo.
Mas os meus olhos cegos espreitavam, e eu só via
Madeira podre ou pedra bruta - nada mais...
E sobere estes clarões a vida decorria,
Como um trapo safando uns traços geniais.
Sim, cai toda a semente em meu jardim.
O vento que a traz a leva...
Senhor, tem pena de mim!
- Deixa-me a tua Luz ou a minha Treva!
José Régio
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