quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

DO MEU ORGULHO


Um dia, ó sonho vão!
Sonhei despir-me todo de vaidade,
E ser, na branca ermida da Humildade,
Um resignado e lírico ermitão!

Desde que abrira os olhos para o largo
E, com olhar de ver, olhara em roda,
Que me ficara adentro da alma toda
Um gosto amargo:

Ó gosto de fazer da pena alheia
A pena própria! e ser de tal maneira,
Que a humanidade inteira
Subisse e tumultuasse em mim como uma cheia!

E humilde, triste, heróico, verdadeiro,
Passei a realizar meu sonho louco:
Nem sei o que sofri! Tudo era pouco
Para sofrer um mundo inteiro.

Vivi de pontapés e bofetadas.
Deitou-me a Fera ao peito a garra adunca.
Fui mudo como as pedras das calçadas
Que todos pisam... mas não falam nunca.

Às vezes, já do coração me vinha,
Em vez de sangue, fel - vinagre e fel.
Mas eu mantinha
Para comigo mesmo o papel...

Minavam-me revoltas desmedidas.
Vinham ao lume de água os velhos lodos...
E eu quisera atirar minh'alma em feridas
À cara de vós todos!

Sorria,
No que era hábito, já, de mascarar.
Mas como vos odiava, eu que sofria
Da raiva de sofrer e calar!

E, como o meu sorriso era magoado,
Quase a pedir perdão
De todo esse ódio verde e espezinhado
Que me roía o coração,

E como eu tinha os olhos e a humildade
Dum réu que ajoelha, e se confessa, e chora,
A turba, olhando-me com toda a autoridade,
Achou que era chegada a hora...

E cada qual
Veio atirar o coice ao velho leão da história.
Ah, que grotescos, em tamanho natural,
Os não conservo, a todos, na memória!

Ora, assim arrastando ante a ralé,
Eu abraçava ao peito o meu tesoiro:
Ó meu orgulho doido! ó minha fé!
Embebedei-me dele como oiro!

Meu espantoso orgulho da humanidade,
E dessa própria lama que beijava!
A minha caridade
Era a moeda viva que o pagava...

Orgulho de ser santo! E o que sofria,
Dava-o por bem sofrido e por bem pago,
Pensando que era grande quem bebia
(Como eu bebia) o derradeiro trago.

Até que pude ver que me enganava:
Desse Anjo que eu, em sonhos, me fizera,
Só um fantoche trágico restava
- Farrapo humano que nem homen era...

E revoltei-me! Então,
Sonhei voltar a ser um outro que matara:
E, remessando a minha luva ao chão,
Pálido e firme, olhei, a ver se algém ma levantara.

Estava muito farto! Era cansaço
O que dava ao meu braço um ar seguro.
Mas ninguém, contra o meu, ergueu o braço,
E a sós me vi a batalhar com o silêncio, a noite, o escuro...

Elevara-me, ainda, uma quiera:
A de me sentir forte.
Mas tudo, à minha roda, emudecera,
E era vazio, cheio só de morte...

Reconhecendo, então, os meus irmãos,
Deixei cair as mãos
E resignei-me - enfim!

E resignei-me a ser pobre animal,
A ser instinto - a ser donzela e fera...
Abaixo as atitudes do Ideal!
E resignei-me a ser o que já era...

Um outro orgulho, pois, rebenta em mim,
Selvagem, simples, indomável, mudo;
Mas eu desejo-o mesmo assim!
(Que eu, hoje, tolero tudo...)


José Régio

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